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quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Este país não é para corruptos
Portugal é um país em salmoura. Ora aqui está um lindo decassílabo que só por distracção dos nossos poetas não integra um soneto que cante o nosso país como ele merece. "Vós sois o sal da terra", disse Jesus dos pregadores. Na altura de Cristo não era ainda conhecido o efeito do sal na hipertensão, e portanto foi com o sal que o Messias comparou os pregadores quando quis dizer que eles impediam a corrupção. Se há 2 mil anos os médicos soubessem o que sabem hoje, talvez Jesus tivesse dito que os pregadores eram a arca frigorífica da terra, ou a pasteurização da terra. Mas, por muito que hoje lamentemos que a palavra "pasteurização" não conste do Novo Testamento, a referência ao sal como obstáculo à corrupção é, para os portugueses do ano 2010, muito mais feliz. E isto porque, como já deixei dito atrás com alguma elevação estilística, Portugal é um país em salmoura: aqui não entra a corrupção - e a verdade é que andamos todos hipertensos.
Que Portugal é um país livre de corrupção sabe toda a gente que tenha lido a notícia da absolvição de Domingos Névoa. O tribunal deu como provado que o arguido tinha oferecido 200 mil euros para que um titular de cargo político lhe fizesse um favor, mas absolveu-o por considerar que o político não tinha os poderes necessários para responder ao pedido. Ou seja, foi oferecido um suborno, mas a um destinatário inadequado. E, para o tribunal, quem tenta corromper a pessoa errada não é corrupto- é só parvo. A sentença, infelizmente, não esclarece se o raciocínio é válido para outros crimes: se, por exemplo, quem tenta assassinar a pessoa errada não é assassino, mas apenas incompetente; ou se quem tenta assaltar o banco errado não é ladrão, mas sim distraído. Neste último caso a prática de irregularidades é extraordinariamente difícil, uma vez que mesmo quem assalta o banco certo só é ladrão se não for administrador.
O hipotético suborno de Domingos Névoa estava ferido de irregularidade, e por isso não podia aspirar a receber o nobre título de suborno. O que se passou foi, no fundo, uma ilegalidade ilegal. O que, surpreendentemente, é legal. Significa isto que, em Portugal, há que ser especialmente talentoso para corromper. Não é corrupto quem quer. É preciso saber fazer as coisas bem feitas e seguir a tramitação apropriada. Não é acto que se pratique à balda, caso contrário o tribunal rejeita as pretensões do candidato. "Tenha paciência", dizem os juízes. "Tente outra vez. Isto não é corrupção que se apresente."
Ter de pagar para poder... pagar!
Contribuinte: Gostava de comprar um carro.
Estado: Muito bem. Faça o favor de escolher.
Contribuinte: Já escolhi. Tenho que pagar alguma coisa?
Estado: Sim. Imposto sobre Automóveis (ISV) e Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA).
Contribuinte: Ah... Só isso.
Estado: ... e uma coisinha para o pôr a circular: o selo.
Contribuinte: Ah!..
Estado: ... E mais uma coisinha na gasolina necessária para que o carro efectivamente circule. O ISP.
Contribuinte: Mas... sem gasolina eu não circulo.
Estado: Eu sei.
Contribuinte: ... Mas eu já pago para circular...
Estado: Claro!...
Contribuinte: Então... vai cobrar-me pelo valor da gasolina?
Estado: Também. Mas isso é o IVA. O ISP é uma coisa diferente.
Contribuinte: Diferente?!
Estado: Muito. O ISP é porque a gasolina existe.
Contribuinte: ... Porque existe?!
Estado: Há muitos milhões de anos os dinossauros e o carvão fizeram petróleo. E você paga.
Contribuinte: ... Só isso?
Estado: Só. Mas não julgue que pode deixar o carro assim como quer.
Contribuinte: Como assim?!
Estado: Tem que pagar para o estacionar.
Contribuinte: ... Para o estacionar?
Estado: Exacto.
Contribuinte: Portanto, pago para andar e pago para estar parado?
Estado: Não. Se quiser mesmo andar com o carro precisa de pagar seguro.
Contribuinte: Então, pago para circular, pago para poder circular e pago por estar parado.
Estado: Sim. Nós não estamos aqui para enganar ninguém. O carro é novo?
Contribuinte: Novo?
Estado: É que se não for novo tem que pagar para vermos se ele está em condições de andar por aí.
Contribuinte: Pago para você ver se pode cobrar?
Estado: Claro. Acha que isso é de borla? Só há mais uma coisinha...
Contribuinte: ... Mais uma coisinha?
Estado: Para circular em auto-estradas...
Contribuinte: Mas... mas eu já pago imposto de circulação.
Estado: Pois. Mas esta é uma circulação diferente.
Contribuinte: ... Diferente?
Estado: Sim. Muito diferente. É só para quem quiser.
Contribuinte:: Só mais isso?
Estado: Sim. Só mais isso.
Contribuinte: E acabou?
Estado: Sim. Depois de pagar os 25 euros, acabou.
Contribuinte: Quais 25 euros?!
Estado: Os 25 euros que tem de pagar para andar nas auto-estradas.
Contribuinte: Mas não disse que as auto-estradas eram só para quem quisesse?
Estado: Sim. Mas todos pagam os 25 euros.
Contribuinte : Quais 25 euros?
Estado: Os 25 euros é quanto custa o chip.
Contribuinte: ... Custa o quê?
Estado: Pagar o chip. Para poder pagar.
Contribuinte: Não percebi...
Estado: Sim. Pagar custa 25 euros.
Contribuinte: Pagar custa 25 euros?
Estado: Sim. Paga 25 euros para pagar.
Contribuinte: Mas eu não vou circular nas auto-estradas.
Estado: Imagine que um dia quer? Tem que pagar.
Contribuinte: Tenho que pagar para pagar porque um dia posso querer?
Estado: Exactamente. Você paga para pagar o que um dia pode querer.
Contribuinte: E se eu não quiser?
Estado: Paga multa!
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